segunda-feira, maio 31, 2010

Personagem

“Admite! Isto é um teatro, no qual ambos actuamos”. – Disse-lhe ela num tom de voz cheio e grave, com um toque de ironia a levantar-lhe a ponta esquerda do lábio. Havia toque de sarcasmo que ele tão bem entendia. Mordeu também ele o lábio, como reflexo de um espelho, apertando as mãos sabendo que não o poderia negar. “Quem cala consente, sabes…”, continuou ela, gozando o poder de ter, uma vez mais, razão. “Se somos ambos actores”, prolongando-se nas palavras e com o dedo sobre o seu ombro, rodopiou, “porque não sermos outros hoje?”, questionou sentando-se ao colo dele. Agora ela era, sabia ele, a namorada do acampamento, bebendo cerveja e desafiando os seus amigos tolos para jogos de bêbados. Surgiu-lhe a memória dela no último verão - no qual andaram de parque em parte feito rali das tasquinhas -, de trança ao lado, vestido branco rendado e pés descalços. Era final de tarde, ela ria-se, tamanha a estala, de uma outra qualquer coisa sem nexo. Todos os dias faziam amor. Esse último pensamento chega-lhe, dando por si a aninhar-se nela, trocando um beijo prolongado. “Estamos a ensaiar?”, questiona ele no final do beijo. Os olhos pequenos dela riem-se, fechando-se como se não visse palmo à frente. Ele ri-se dela. Há amor ali. Ainda assim, ela queria ser mais. Ao fim ao cabo, ela também era mulher.